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segunda-feira, dezembro 19, 2011

Um Artista do Interior

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Na última edição de 2011 da revista Soma eu assino (em parceria com a fotógrafa Uliana Duarte) uma matéria sobre o Moacir, artista plástico que provoca por instinto e sem qualquer afetação metropolitana, nativo da vila de São Jorge, interior de Goiás e ponto de partida para as paisagens mais exuberantes da Chapada dos Veadeiros. Lá no site da revista, o número 26 tá todo disponível, mas pra multiplicar os canais repliquei aqui também o perfil excêntrico do Moacir. Siga a letra.





Subversão Naïf


Alheio ao mundo das artes, Moacir confirma de um jeito bastante especial a máxima junguiana de que “Pintar aquilo que vemos diante de nós é uma arte diferente de pintar o que vemos dentro de nós”. Mais que uma frase de efeito, a citação que abre o longa-metragem de Walter Carvalho, Moacir Arte Bruta (de 2006), é a senha para tentar entender o artista que vive em uma casa pequena na vila de São Jorge, distante cerca de 36 km de Alto Paraíso, epicentro turístico da Chapada dos Veadeiros, interior de Goiás.


Fotos deste post: Uliana Duarte


Depois de uma negociação telefônica arrastada, que passou por três intermediários até a confirmação da visita (primeiro com Juliano Basso, agente informal do artista e produtor do Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros; segundo com a Tila, membro da ASJOR – Associação dos Moradores da Vila de São Jorge; e por último com Elisênia, irmã de Moacir), cheguei ao vilarejo no fim de um sábado e acertei o encontro para a manhã do dia seguinte. No domingo fui recebido na casa-ateliê por Moacir, sua mãe – já em idade avançada e visivelmente senil –, e Elisênia, que monitora de perto o interesse do grande número de admiradores, compradores, jornalistas e curiosos que procuram seu irmão.




Obcecado pela anatomia feminina, onipresente em uma profusão distorcida de vaginas enxertadas na parte mais significativa de seu trabalho, a primeira impressão que o artista deixa é a de que vive num universo particular com poucas intersecções com o mundo real. As paredes da sala da casa onde mora com a mãe são pintadas com cenas que misturam erotismo e religião, fotos de mulheres em posições ginecológicas e montagens em que retratos dele mesmo interagem com as genitálias de papel. Do lado de fora, a fachada exibe painéis nos quais santos convivem com funerais em série e pornografia hardcore.




Moacir cresceu na vila ao lado de oito irmãos, mas revelou um talento proporcional à excentricidade de seu comportamento. Já no nascimento, segundo lembranças dos pais, revelou pistas físicas de uma condição que se confirmaria singular: o bebê tinha pequenos “brincos” de pele pendurados no pescoço. Na falta de condições adequadas, a solução sertaneja foi arrancar os apêndices indesejados com um nó de cordas finas enrolados ao redor de cada um deles. E na primeira infância as pistas seguiram fortes, como confirma sua mãe, ao revelar que o filho recusou a amamentação.

Experimentou os primeiros rabiscos com um pedaço de carvão aos 7 anos de idade e desde então nunca mais parou, apesar de não ter estudado (“Só fui na escola um dia, aprendi só o ABC”) e de ter passado pelo garimpo, onde conta que sofreu muito. Durante a adolescência, Moacir evitava a companhia da maioria dos moradores da vila e, quando na presença de alguém, só desenhava debaixo de um cobertor, se esticando de lá de dentro para revelar o resultado. Em crises mais agudas reclamava da “catinga de gente” e procurava abrigo solitário no mato, onde se escondia por horas. Já no começo da vida adulta construiu um rancho de palha no terreno dos pais, e assim se poupou também da presença cotidiana dos numerosos familiares.




A despeito de tudo isso (e de um pouco mais), sua família garante que exames psiquiátricos minuciosos nada encontraram de defeituoso em sua cabeça e que, embora mantenha um comportamento estranho e em certa medida antissocial, Moacir leva uma vida comum, fazendo suas próprias compras, pagando contas e definindo ele mesmo o preço de suas obras, acompanhado da irmã somente porque, segundo ela, sua dicção fanha e embaralhada dificulta o entendimento das outras pessoas.


Moacir dialoga com o mundo em seu próprio idioma, e não se furta o direito à vaidade, nem esconde o prazer em exibir sua obra. E, mesmo respondendo com monossílabos pouco inteligíveis, abre uma pasta com os trabalhos mais recentes e se põe a mostrar desenhos coloridos com giz de cera, ao mesmo tempo em que a irmã se desculpa pela “pouca” quantidade de material, contando que no fim de semana anterior receberam a visita de um editor carioca e de uma marchand de Goiânia que, com a intenção de lançar um livro sobre as pinturas do irmão, compraram grande parte do acervo disponível. Enquanto investigo o farto conteúdo da pasta, Moacir já está plugando a câmera na TV, ansioso por mostrar também seus caóticos vídeos. Gravados ali mesmo, dentro de casa e ao redor dela, os vídeos registram não só os desenhos que enfeitam as paredes (que são constantemente apagados e recriados), mas um discurso frenético que oscila entre uma espécie particular de apocalipse religioso, autoafirmação e repúdio à implicância da pequena vizinhança. Ora em off, ora gesticulando diante da câmera fixa no tripé, Moacir repete seus adágios obsessivamente, sempre falando de si na terceira pessoa: “O mundo tá cheio de mulher!”, “Moacir é um grande artista, o homem mais importante de São Jorge!”





As sequências são tremidas e desordenadas e o discurso é circular, como num mantra bizarro que muitas vezes assusta o turista desavisado que passeia diante de sua casa. Surdo de um ouvido, Moacir mantém a TV em volume alto, e a falação pouco compreensível sempre provoca reações em quem não sabe do que se trata. Já no fim do dia, aguardando do lado de fora o fim de mais uma sessão de fotos, sou interpelado por um casal de curiosos que me pergunta o que é tudo aquilo. Tento explicar, mas mesmo diante do esclarecimento os dois saem murmurando algo sobre satanismo, impressionados pelos pictogramas demoníacos e pelas cenas de sexo oral com facas. Logo que me despeço do casal, Moacir coloca somente a cabeça para fora da porta e me chama, fazendo movimentos rápidos com a mão: “Você veio de avião?” Respondo que não, mas ele aponta uma aeronave que ainda faz barulho no horizonte e repete: “Você veio de avião?”




De volta ao interior da casa, diante da TV que agora mostra uma sequência na qual Moacir está particularmente agitado, Elisênia sorri e explica que na ocasião da gravação o irmão estava bêbado, e que a cerveja é um de seus hábitos diários. Quando questionado sobre a recorrência de mulheres nuas em seus desenhos, Moacir deixa escapar um sorriso tímido, abaixa o olhar e desconversa, ainda monossilábico, enquanto a família conta que ele nunca viu uma mulher pelada de perto, sugerindo que o artista de 58 anos obcecado por santos, demônios e vaginas é virgem. Ao ver o desenho inacabado de uma figura de semblante plácido, barba e cabelos longos, pergunto se é Jesus Cristo. Ele nega enfaticamente, dizendo se tratar de uma figura “que vem e vai, mas que se rezar desaparece”.

E, se o aparente contexto psiquiátrico e a insistente temática religiosa de seus trabalhos forçam uma comparação de sua obra com a de Arthur Bispo do Rosário (que produziu a maioria de suas cerca de mil peças dentro de um manicômio), o ponto central que os separa reside na firme negação do caráter artístico que o finado artista carioca impôs à sua produção, atribuindo-lhe uma conotação messiânica, de “obra da salvação”. Moacir se orgulha do título de artista e, imerso numa liberdade desconcertante, trata a doutrina cristã como um exercício de conveniência: num momento atribui um apocalipse iminente à “falta de oração do povo”, explicando que só se salvará do fim-do-mundo quem morar em casas redondas, e logo em seguida desdenha a prática religiosa, vinculando uma carga francamente negativa aos preceitos beatíficos.




Intercalando curtos períodos de isolamento voluntário (em que recusa qualquer convívio, se abstendo da pintura ou pintando somente capetinhas), e a produção periódica (“um desenho todo dia”), agora Moacir coloca outro vídeo em que gravou a própria TV exibindo o menu principal de Moacir Arte Bruta, o filme do Walter Carvalho. Mas o pintor não quer falar sobre o cineasta. Segundo sua irmã, depois de finalizadas as gravações do filme, o diretor nunca mais apareceu, nem enviou uma cópia do documentário ao seu protagonista, o que deixou Moacir bastante decepcionado. Para assistir ao filme na época de seu lançamento, ele teve que viajar até Brasília, e a única cópia que mantém em casa ganhou no ano passado de um de seus muitos admiradores.




Assim que cada vídeo termina, Moacir troca rapidamente os mini-DVDs que selecionou para nos apresentar. Ele acaba de dar play em outro de seus discursos embriagados diante da câmera, dessa vez com a latinha de cerveja na mão. Reclama aos berros da vizinhança fofoqueira: “O inferno tá preparado pra quem fala da vida do Moacir!” Num encontro casual na noite anterior, Juliano Basso havia me narrado um dos inúmeros episódios da peleja do artista com os vizinhos, quando Moacir pintou capetinhas em vários postes da vila, sendo rapidamente repreendido pelos demais moradores, que apagaram os desenhos. Depois disso ele passou a acordar de madrugada para repintar os capetinhas apagados, numa guerra silenciosa com a pequena vizinhança.




Hoje, porém, o talento recusado pelo temor religioso dos moradores de São Jorge começa a correr o mundo das artes e, se a cópia de um desenho é vendida pelo próprio artista por vinte reais (os originais saem por R$ 250,00), em galerias seus quadros já atingiram a cotação de 5 mil reais, e os compradores internacionais garantem que parte significativa de sua produção seja exportada.

Ainda com a TV ligada, agora debruçado sobre a mesa, o artista desliza o giz de cera preto sobre uma folha branca, de onde rapidamente surge a imagem de um santo segurando um peixe enorme. Intimidado pela câmera, ele levanta a cabeça somente para rápidas espiadas na televisão, que novamente mostra sequências desfocadas da fachada de sua casa. Enquanto escolhe as cores para dar acabamento ao desenho, pergunto se gosta de ver TV, ao que ele resmunga um “Gosto não! Só quando tem bichaiada”. Só entendo o que ele quis dizer depois que Elisênia me socorre, explicando que o irmão reclama dos tipos humanos da televisão e gosta mesmo é dos documentários de vida animal ou simplesmente de imagens de bichos, apesar de deixar o aparelho quase sempre ligado, mesmo prestando pouca atenção a ele.




De repente ouço uma porta da casa batendo, por dentro. Aponto de onde vem o barulho e Moacir, a princípio, parece não entender, mas logo toma uma atitude: tira um molho de chaves do bolso e destranca a porta, libertando a mãe. Em seguida, abre um sorriso maroto: “Ela tava dormindo”.

Moacir não acredita em Deus, mas faz questão de embutir um apêndice preventivo em sua declaração de ateísmo: “Não acredito não, mas nunca fiz mal a ninguém”. Em outra passagem de sua conturbada relação com os vizinhos, a polícia local mandou o artista apagar os desenhos de mulheres peladas das paredes externas de sua casa. Moacir o fez, mas substituiu os nus por cenas violentas, em que policiais eram assassinados a facadas.

E é equilibrando seus impulsos artísticos entre o que vê diante de si e o que se impõe desde dentro de seu universo particular que Moacir intriga o mundo das artes, transformando com uma técnica tão primitiva quanto vigorosa um cotidiano interiorano prosaico em uma obra de impressionante força gráfica, cujas interpretações exteriores têm infinitamente menos importância que os significados íntimos que respondem, de fato, somente ao seu inevitável instinto de criar.

























sexta-feira, dezembro 16, 2011

the number of the beats 2011/19

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Formado no ano passado, o Bixiga 70 só lançou seu primeiro disco em 2011.





A big band paulistana se concentra na polifonia sinuosa do afrobeat, mas entrega sua origem latina no suingue agudo do trompete e na percussão pesada do samba. "Grito de Paz" é a faixa de abertura do álbum, que se estende por mais nove peças instrumentais que submetem, de uma maneira muito própria, o funk, o jazz e o soul à música africana contemporânea.




















quarta-feira, dezembro 14, 2011

Biomatemática

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the number of the beats 2011/18

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Depois de atingir seu apogeu criativo com o brilhante "A Crow Left of the Murder" (de 2004), o Incubus se arriscou na banguela e desde então vem descendo ladeira abaixo.




Lançado o mediano "Light Grenades" em 2006, a banda cumpriu um longo hiato e só agora volta à berlinda com "If Not Now, When?", que se alonga por oito baladas maçantes até revelar uma fagulha daquele Incubus que empolgava. A faixa 9, "Switchblade" (ouça acima), abre a curtíssima sequência do disco que vale realmente a pena (seguida pela inspirada "Adolescents"), num encaixe de grooves pesados, guitarra incidental e baixo distorcido, completado pelas belas ondulações dos vocais de Brandon Boyd.





















segunda-feira, dezembro 12, 2011

domingo, dezembro 11, 2011

Goiânia Noise 2011 em 1 minuto

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A décima sétima edição do Goiânia Noise se espremeu de improviso nas dependências do Sol Music Hall, espaço que substituiu as amplas instalações do Centro Cultural Oscar Niemeyer - consagrado pela experiência como o lugar ideal para receber o festival. Mas apesar do entrave político que mais uma vez obstruiu o CCON, a festa se adaptou ao caixote de pé direito altíssimo e cumpriu a tabela como pôde.




Uma vez dada a largada, o festival demorou apenas seis trocas de palco para exibir o melhor show da programação: baseada no ska e no reggae festivo, a dupla Peixoto & Maxado foi a primeira atração a incendiar uma plateia já elétrica mas que ainda não lotava o salão. Sucedendo a festa jamaicana o grupo local Space Truck revelou-se como a primeira boa surpresa do line up: tirando o mofo da tradição setentista, o power-trio se faz em cima do limo das guitarras e da personalidade dos vocais. Os noruegueses do BigBang e os rappers angelenos do Delinquent Habits fizeram apresentações protocolares para um público que não estava ciente de seus hits.

Durante o show do Hellbenders, o agora ex-Monstro Discos Fabrício Nobre ostentava os punhos em riste na primeira fila, experimentando a sensação de novamente fazer parte da plateia de um evento que comandou por tantos anos. Depois da apresentação, procurado para gravar uma entrevista a respeito de suas impressões sobre o festival, Fabrício recusou diplomaticamente o convite, prometendo um depoimento “para o Noise do ano que vem”.


Mesmo sem seu membro mais carismáico e sustentando praticamente todo o show em um repertório que não se renova há mais de uma década, o Raimundos ainda move as massas e foi o maior apelo de público da sexta feira. Seguindo o programa, o Cidadão Instigado foi destaque, mas disso eu já falei ali embaixo. Focado nos riffs de guitarra, o Bellrays fechou a noite dispensando a elegância de seus grooves soul, estratégia para agradar ao público essencialmente roqueiro que permaneceu até o fim da festa, mas que escondeu sua faceta mais interessante e provocou saudades da apresentação bem dosada entre peso e suingue que a banda fez em Brasília, quatro anos atrás.


Num comparativo direto, a programação do sábado perdia de goleada para a de sexta. Um público consideravelmente menor e atrações como o blues-rock canastrão do Galo Power ou a ingenuidade experimental do Vida Seca só confirmariam a previsão. Mas nada comparado à constrangedora apresentação do De Falla, que já entrou no palco perdido entre a precariedade instrumental e o exagero performático.

O Violins resumiu seu show na estreita ligação de seu repertório com seu público fiel, enquanto o Claustrofobia reuniu a maior plateia da noite. Já perto do fim, a nova formação que acompanha Siba (que reassumiu a guitarra depois de anos à frente do Mestre Ambrósio e, depois, da Fuloresta do Samba) não chegou a comover a pequena multidão diante do palco secundário, talvez mais interessada na promessa de baile da última atração da noite.

Esperando no camarim para entrar em cena e reanimar de pronto um público já cansado, Gerson King Combo assistia, ao lado de sua banda, um Gil Brother praticamente cego (fora dali o mestre de cerimônias do festival era literamente guiado por um assistente) divulgando seu site e executando uma coreografia improvisada diante de qualquer câmera, sempre finalizando a performance com um de seus bordões nonsense.


























terça-feira, dezembro 06, 2011

XVII Goiânia Noise Festival (II)

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É ao vivo que o Cidadão Instigado faz sentido. Baseado no protagonismo discreto da guitarra de Fernando Catatau, o penúltimo show da madrugada de sexta arranjou fácil um lugar entre os melhores do festival.



No vídeo acima, Catatau e cia chegam perto do fim da apresentação com "O Nada", e se o áudio não está lá essas coisas a culpa é toda minha, que estava perto demais do palco.
























segunda-feira, dezembro 05, 2011

XVII Goiânia Noise Festival

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Ainda estou tentando resumir o Noise 2011 segundo meus cinco sentidos, mas já boto umas linhas aqui sobre a primeira edição do festival da era pós-Fabrício Nobre.



Quem aguentou de pé até o final da noite de sexta deve ter visto o Bellrays dispensar sua faceta mais soul e priorizar um repertório mais barulhento, decepcionando uns e outros, mas acertando em cheio o coração garageiro dos patrícios.