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quarta-feira, maio 22, 2013

A Virada não é caso de polícia



Na manhã de segunda feira (20), no rádio do táxi que me levava de volta ao aeroporto de Congonhas, a locutora fazia um balanço da Virada Cultural, ocorrida em São Paulo no último fim de semana (18/19). Mas nenhum comentário a respeito da extensa programação, já que o evento que reuniu 4 milhões de pessoas nas ruas da cidade produziu muito mais manchetes policiais do que culturais. Normal. Na lógica mercantilista da grande imprensa, más notícias são sempre boas notícias. Mas um latrocínio, uma morte por suspeita de overdose, muitos assaltos, vários furtos e uma série de “arrastões” não podem apagar a exuberância artística da Virada. 


(Fotos deste post retiradas do site oficial da Virada)


Fugindo dos assaltos da Praça da 
República, fui pego pelo cortejo ensurdecedor 
dos blocos na av. São João e quase preferi o arrastão


Desembarquei em SP na véspera da maratona de shows, com reserva num hotel do centro, pertinho do famoso cruzamento da São João com a avenida Ipiranga, o olho do furacão. Não levei câmera para a festa, escaldado que estava com o assalto que sofri no Rio de Janeiro no fim de março, e os vídeos que acompanham este post foram todos feitos com o celular.


A noite de sexta começou com um beirute de calabresa na Cachaçaria do Rancho, ali do lado – na Praça Dom José Gaspar, antes de atender a um convite para assistir ao espetáculo Humus, da Companhia Antônio Nóbrega, no auditório Ibirapuera. Mas como minha sensibilidade para a dança é claramente subdesenvolvida, não me atrevo a comentar a apresentação. De lá partimos para o regabofe da Companhia, numa noite regada a cerveja, suco de mexerica e muito bate-coxa.


As placas que indicavam a
direção dos palcos só me enganaram uma vez. 
Depois resolvi ignorá-las e me informar com a polícia


Aproveitei a manhã de sábado para passear pelo centrão. Comecei pela Galeria do Rock, e da Baratos Afins levei o vinil de Nobody Can Live Forever - The Existential Soul Of Tim Maia, compilação fina da obra do síndico feita pelo David Byrne, lançada ano passado pela Luaka Bop. Ali perto, na livraria Calil – autoproclamado sebo mais antigo de São Paulo, a Uli – minha mulher, arrematou quatro gravuras do século XIX que retratam a áspera relação entre índios e exploradores europeus. Na hora do almoço, voltei à Praça Dom José Gaspar para a feijoada do Pari Bar, que encheu o tanque antes do mergulho na programação da Virada. 


Pra abrir os trabalhos fui ver o Lucas Santtana no palco da 25 de Março e mesmo passando o som de última hora, atrasando o line up em mais de 50 minutos, os técnicos do baiano só acertaram a mão no fim do show, quando já me preparava para ir embora, pegar a fila do Municipal.





Lançado em 1977, O Filho de José e Maria foi o maior fracasso da carreira de Odair José, mas é de longe seu disco mais ambicioso. E se o reconhecimento demorou quase 40 anos para chegar, quando apareceu veio em traje de gala. A fila para pegar os ingressos do show em que o cantor goiano executaria o álbum na íntegra quase abraçava o Theatro Municipal. Já de ingresso na mão, amarguei  duas horas em outra fila para garantir uma vaga nas primeiras fileiras.

O Theatro municipal é um espetáculo à parte. Arquitetura europeia, decoração quatrocentona e atmosfera aristocrática. Nada a ver com o “cantor das empregadas”, mas por isso mesmo a combinação foi tão estimulante. À vontade no palco contornado por uma moldura dourada, Odair lembrou que na época do lançamento de O Filho de José e Maria sua intenção era apresentá-lo ali naquele tablado, mas a má-vontade e incompreensão de crítica e público enterraram suas ambições. Desiludido, o cantor retomou sua fórmula e resgatou o sucesso com o disco seguinte, intitulado Coisas Simples – uma negativa contrariada à sua própria complexidade artística.

Diante da plateia ganha, Odair alterou a ordem das canções e atualizou as gemas “De Volta Às Verdadeiras Origens” (suprimindo os arranjos de saxofone e errando a entrada do vocal - vide vídeo abaixo) e “Nunca Mais” no clímax da apresentação, somente igualado pelo bis com “A Noite Mais Linda do Mundo”, celebrada pelo público com uma ovação calorosa. Não fosse o George Clinton, teria sido o melhor show da (minha) Virada.





































Eumir Deodato, no Theatro
Municipal, reclamando de barriga cheia


Depois do Odair, já perto das 2 da manhã, a boa seria o show do Marcos Valle na praça da República, mas chegando lá quase caio em um dos vários arrastões da noite, o que me demoveu da ideia. Às 3 da madruga George Clinton e seu PFunk All Stars se apresentariam na Praça Júlio Prestes, mas munido de um ingresso para o mesmo show no dia seguinte, no Sesc Ipiranga, abri mão do risco e voltei para o hotel.


O domingo já começou cabuloso, com o encontro da lenda Pharoah Sanders com o São Paulo Underground. Pharoah é um dos melhores saxofonistas do jazz (e isso quem diz é o Ornette Coleman). São Paulo Underground é a franquia brasileira do Chicago Underground, ambos liderados pelo trompetista Rob Mazurek.

O céu nublado ajudou a pequena multidão reunida diante do palco do Pátio do Colégio a não derreter sob o sol do meio-dia, mas do radicalismo experimental do grupo ninguém escapou. Enterrado no improviso, o vocabulário jazz do conjunto foi pontuado pelo diálogo provocador e instintivo entre trompete e sax-tenor, sem nenhuma reverência exagerada para Pharoa, que já conta mais de 70 anos e passou parte da apresentação sentado. Antes da uma da tarde a banda encerrou seu set sob aplausos simpáticos de uma plateia que parecia não ter assimilado bem a polifonia cruzada do grupo.


Dispersada a multidão, segui o fluxo e, por acaso, dei com a apresentação do português Mário Moita, que entoava fados ao piano. Perto dali, almocei um pastel de carne antes de voltar ao Municipal para o show do Eumir Deodato, que faria seu disco de 73, Deodato II.

Nos intervalos das músicas, Deodato reclamava insistentemente da impossibilidade de fazer todas as  faixas do álbum apenas com 3 músicos no palco, explicando que deixara duas de fora do repertório daquela tarde. Mesmo assim, substituindo os desfalques por releituras de, por exemplo, “Berimbau” – de Baden Powell, o trio cumpriu tabela diante de uma plateia atenta.


Saindo do Municipal, voltei para uma 25 de Março completamente lotada para o show da Céu, que mesmo sem grandes surpresas fez a alegria da multidão com seus pequenos clássicos, como “Lenda”, “Cangote” (numa versão mezzo guitarrada paraense) e “Retrovisor”. Na última música eu já estava a caminho do metrô, na expectativa de fechar a Virada com aquele que era, pelo menos por mim, o show mais esperado da programação.





Cheguei ao Sesc Ipiranga esperando outra multidão, mas tive uma agradável surpresa ao descobrir que a audiência da apresentação não excedia, se tanto, umas 500 pessoas. Marcado para 6 da tarde, menos de meia hora depois os PFunk All Stars já ocupavam o palco, esquentando o público para a entrada triunfal de George Clinton. Mesmo com quase 72 anos de idade, Clinton ainda se mantém firme no papel de centro gravitacional do espetáculo, regendo 15 músicos com uma presença de palco transbordante de simpatia.

É verdade que o fundador do Parliament-Funkadelic quase não cantou, deixando a função para a série de vocalistas de apoio, e tomava o microfone para si somente em momentos-chave. O que não desabona em nada o show, que entre figurinos de cores berrantes, performances frenéticas e colisão de estilos, soou como uma exuberante ópera soul, pontuada por clássicos como “We Want the Funk” e covers como “Crazy”, do Gnarls Barkley.

Em dado momento da apresentação, sentindo cheiro de canabis vindo da plateia, George pediu para fumar, sendo atendido com um baseado atirado ao palco. Sem nenhuma cerimônia, Clinton acendeu e tragou uma vez, antes de guardar o baseado no bolso do terno marrom e seguir com o show.





Depois de uma hora e meia, George Clinton e os PFunk All Stars encerraram o espetáculo convidando o público para subir ao palco, que ficou tomado por dezenas de pessoas enquanto o frontman aproveitava a confusão para sair de cena discretamente.

E antes das 8 da noite de domingo a Virada Cultural chegava ao fim, num saldo infinitamente mais positivo do que faziam crer as manchetes da grande imprensa, alheias à enorme diversidade artística espalhada pela cidade e focadas nos acidentes policialescos de um evento culturalmente tão plural.









São Paulo é um cinzeiro



O Rio de Janeiro continua lindo, mas...




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