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segunda-feira, outubro 04, 2010

Em busca do elo perdido

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Dia desses cumpri uma pauta pro projeto Elo Perdido, iniciativa do Observatório Fora do Eixo (e patrocinado pela Funarte) que investiga a atual reflexão crítica de alguns dos principais movimentos artísticos brasileiros na nova realidade digital do movimento independente. Escolhi analisar o tema sob uma perspectiva histórica, e o resultado será oficialmente lançado (ao lado dos outros textos selecionados) no e-book do projeto, mas pra facilitar a vida do pessoal que perde tempo visitando isso aqui, arrastei pra cá a íntegra do texto, que você pode seguir aí embaixo. Good reading.


seja marginal, seja herói.
Obra de Hélio Oiticica




Uma Utopia Tropical


Em meados dos anos 90, o conceito de regionalismo universalista expresso no manifesto do movimento Manguebeat, que pautaria boa parte da produção musical independente brasileira na década e cuja imagem definitiva é a da parabólica enfiada na lama do mangue, atualizava um adágio tropicalista, na medida em que nivelava a importância da influência da tradição regional e nacional com qualquer referência estrangeira que valesse a pena. É claro que a conjuntura que elevou Chico Science & Nação Zumbi a categoria de símbolo máximo do movimento de maior renovação conceitual da música popular brasileira desde a Tropicália (e que, observadas as diferenças geográficas e de contexto, pode ser entendido como um eco atávico da própria), era bem menos polarizado que o cenário convulsivo do Brasil pós-64 e pré-AI-5.


Vítima da doutrina revolucionária que submetia a arte ao atendimento de suas pretensões políticas imediatas (gestada e difundida a partir do CPC. – Centro Popular de Cultura, órgão da UNE – União Nacional dos Estudantes – oficialmente extinto ainda em 64), a música popular brasileira de então sofria um ostensivo processo de limitação de conteúdo, restringido ao “denuncismo” de temática estritamente nacional (e de cores socialistas), que combatia ferozmente a “alienação” das nossas primeiras versões do florescente rock internacional, encarnadas na ingenuidade das guitarras da turma de Roberto Carlos, então um ídolo adolescente. Mas é claro que apesar da radicalização dos discursos depois do golpe militar, o mapa da MPB ainda mantinha fronteiras borradas, e músicos da bossa nova (que, apesar de outrora acusada de contaminar o samba com os estrangeirismos do jazz, ainda mantinha proximidade com os teóricos cepecistas e a ala purista da MPB) que recusavam a circunscrição da música ao panfletarismo político de esquerda, e admiradores da jovem guarda que não dispensavam seus discos de samba tradicional, ainda que em franca minoria, observavam tudo em relativa passividade. Pelo menos até 1967.


Vindo da Bahia, um grupo de artistas fascinado por João Gilberto, Beatles e Oswald de Andrade ensaiava seus primeiros passos no Rio de Janeiro, a capital cultural do Brasil sessentista. Acompanhando a irmã Maria Bethânia (que fora ao Rio de Janeiro para substituir Nara Leão no show Opinião, um eco clandestino da arte cepecista), em 1967 Caetano Veloso lançou seu primeiro disco, “Domingo”, dividido com Gal Costa e que reverenciava a tradição pelas mãos modernizadoras da bossa nova. Ainda assim, “Domingo” era a reprodução de um modelo já criado, a síntese do samba pela bossa nova, e mesmo que Caetano ainda não tivesse explorado o principal de sua ânsia pelo novo, derramava elogios à vocação de Gal Costa para a vanguarda, declarando textualmente no encarte do disco: “Gal participa dessa qualidade misteriosa que habita os raros cantores de samba: a capacidade de inovar, de violentar o gosto contemporâneo, lançando o samba para o futuro, com a espontaneidade de quem relembra velhas musiquinhas”.


Nesse mesmo texto também flertava com a Contradição que seria posteriormente assumida como diretriz, se declarando já desviado do caminho sugerido por sua estréia: “(…) minha inspiração agora está tendendo pra caminhos muito diferentes dos que segui até aqui. (…) A minha inspiração não quer mais viver apenas de nostalgia de tempos e lugares, ao contrário, quer incorporar essa saudade num projeto de futuro.” Traduzindo para o português claro, Caetano não via razão para se obrigar a escolher entre o tradicional ou o moderno, entre o nacional ou o estrangeiro, entre isso ou aquilo. Assim como seus futuros comparsas tropicalistas, não queria saber de exclusões prévias e exigia direito pleno tanto ao antigo, à tradição, quanto ao novo, às vanguardas do mundo: a isso e aquilo.


O emblemático III Festival de Música Popular Brasileira, ainda em 1967, onde Gilberto Gil e Caetano Veloso libertaram, debaixo de vaias intensas, a MPB dos grilhões de uma esquerda maniqueísta, filha direta da guerra fria, foi um apogeu impensado: acompanhados respectivamente pel’Os Mutantes em “Domingo no Parque” e pelos argentinos do Beat Boys em “Alegria, Alegria”, Gil e Caetano reivindicavam para si tanto as heranças da pop art de Andy Warhol e do desbunde de Beatles e Rolling Stones, quanto o legado do movimento modernista brasileiro. Nascia, a fórceps, a Tropicália, assim batizada pela imprensa que se apropriou do título da instalação homônima do artista plástico Hélio Oiticica (que simulava uma floresta tropical ao redor de um cubo-ambiente onde jazia uma televisão ligada), ele próprio em sintonia fina com as intenções tropicalistas.


No fim de 1968, alguns meses antes de Gal Costa, numa espécie de último suspiro de rebeldia, lançar o disco mais radical da Tropicália (intimamente associado ao psicodelismo pesado que ganhava destaque mundial via movimento hippie), Caetano e Gil foram presos segundo a alegação de desrespeito ao hino e à bandeira nacionais. Em julho de 1969, já sob vigência doAI-5 – Ato Institucional nº5, depois de um show de despedida em Salvador, os dois seguiram para o exílio compulsório em Londres.


Antes disso, ainda em 1968, Caetano havia sido mais uma vez massacrado pelas vaias, tomates e ovos atirados pela platéia de estudantes no III FIC (Festival Internacional da Canção), e no lugar de apresentar “É Proibido Proibir” – canção-colagem inspirada nas pichações de estudantes pelas ruas de Paris em maio daquele ano, reagiu esgoelando um discurso tão raivoso quanto emblemático, onde externava furioso sua repulsa pela padronização de pensamento arrotada com um orgulho cego pela classe universitária engajada:


Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada. Hoje não tem Fernando Pessoa. Eu hoje vim dizer aqui, que quem teve coragem de assumir a estrutura de festival, quem teve essa coragem de assumir essa estrutura e fazê la explodir foi Gilberto Gil e fui eu. Não foi ninguém, foi Gilberto Gil e fui eu!(…) O problema é o seguinte: vocês estão querendo policiar a música brasileira. (…) se vocês, em política, forem como são em estética, estamos feitos! Me desclassifiquem junto com o Gil! junto com ele, tá entendendo? E quanto a vocês... O júri é muito simpático, mas é incompetente.


E antes que a década de 70 se apresentasse o Tropicalismo estava enterrado, sob os olhares transatlânticos de seus principais mentores. Mas mesmo desmontado, o meteórico movimento que sacudira as estruturas da arte brasileira, propondo que não nos privássemos do mundo e fossemos nós mesmos os primeiros a rir de nosso próprio subdesenvolvimento, já havia operado transformações permanentes na música, e seus principais conceitos foram amplamente absorvidos não só pela MPB. Nos anos 70, fruto dos desdobramentos que dividiram Os Mutantes, o guru psicodélico do grupo, Arnaldo Baptista, formatou o que viria a ser a primeira experiência de uma banda brasileira a trabalhar sem gravadora. Pouco depois de sua saída, em 1978, o Patrulha do Espaço gravou aquele que é conhecido como “O Disco Preto”, considerado o marco inicial da música independente no Brasil.


Anos 80 adentro, a experiência tropicalista encontrou ressonância, entre outros, na provocação caleidoscópica da Vanguarda Paulista, movimento inaugurado pelo experimento dodecafônico de Arrigo Barnabé, com Clara Crocodilo, e pelo suingue invertebrado de Itamar Assumpção, com Bebeléu, Bebeléu, e que mantém herdeiros claros entre os indies do novo milênio. Em 1993, sintomaticamente às vésperas da explosão do Manguebeat e da realização das primeiras edições de festivais como o Abril Pro Rock e o Junta Tribo (espécie de gênese do que viria a se tornar o atual circuito de música independente), Caetano e Gil revisitaram o movimento no disco Tropicália 2, onde a conceituação tropicalista foi vistoriada pelos olhos cinqüentenários, porém ainda tão cítricos quanto 25 anos antes, dos dois músicos.


A ruptura estética imposta pelo Tropicalismo, que retorceu a temática nacionalista e escancarou os horizontes da MPB para muito, mas muito além da luta de classes, é o principal espólio deixado pelo movimento, que atravessou as décadas até alcançar a nova música brasileira que, surgida no período de transição do absolutismo padronizador das gravadoras para a tropicalidade pós-moderna onde a pluralidade da música é tão natural quanto a velocidade alucinante com que é compartilhada livremente via web, se ocupa das questões de seu tempo, avançando em campos estéticos tão elásticos que muitas vezes acabam esbarrando no passado para prenunciar todo um futuro de possibilidades em aberto. Tal qual profetizara, quarenta anos atrás, a utopia tropicalista.






Um comentário:

eduardo disse...

Cara, excelente panorâmica sobre a Tropicália (infelizmente “abatida em pleno vôo pelo AI-5”, como diz Tárik de Souza...) e seus ecos na cultura brasileira. Avisa ae quando for lançado este e-book que serei um dos que irá correndo baixar.

Só senti falta da presença do Rogério Duprat nesta estória, já que o cara foi um dos compositores/criadores mais importantes tanto na constituição do tropicalismo quanto na transformação dos Mutantes numa das bandas mais "universais" que o Brasil já produziu.

Tomo a liberdade, pois, de fazer uma espécie de "nota de rodapé" aqui nos comments com um trechinho que escrevi faz uns anos e que traz um pouco de informação sobre o Duprat:

"Rogério Duprat tinha sido violoncelista do Teatro Municipal de São Paulo e tinha estudado na Alemanha com revolucionários compositores contemporâneos como Stockhausen e Pierre Boulez (numa das turmas estava o roqueiro debochado Frank Zappa). Em 65, criou, junto com o poeta concretista Décio Pignatari, o Marda (Movimento de Arregimentação Radical em Defesa da Arte).

Como aponta Carlos Calado, em A Divina Comédia dos Mutantes, "aos 34 anos de idade, depois de ter feito inúmeras experiências com música eletrônica, música serial ou mesmo aleatória, até chegar aos happenings idealizados pelo anarco-vanguardista norte-americano John Cage, não havia muito mais a fazer. Duprat só viu uma saída para fugir do tédio que já sentia em seus últimos trabalhos. O jeito era mudar de língua: trocar a música erudita pela música popular." (pg. 125)

É assim que entram em cena pela primeira vez os Mutantes, jovens iconoclastas fãs de Beatles e animados com a farra tropicalista, que gostaram da "idéia de invadir a praia dos emepebistas com guitarra e baixo elétrico” para acompanhar Gil: pois “farra e provocação era com eles mesmos." (pg. 129)


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Outro trecho bem interessante do mesmo livro é aquele onde se diz que o movimento tropicalista, pra usar uma expressão de Capinan, tinha a intenção de ser “uma chuva de verão que alagasse infinita enquanto durasse”. Segundo Carlos Calado, “a intenção principal dos tropicalistas era desafinar o tom hegemônico das canções de protesto e da MPB politizada em meados dos anos 60. (...) Para combater o aristocratismo musical da época, o apoio à Jovem Guarda e a conexão com a música pop internacional foram estratégicas para a vitória da Tropicália.”

É isso. Abraço!