* Texto originalmente publicado no Portal Fora-do-Eixo.
No princípio era somente o verbo (a irromper, num conjunto dolorido de vozes, o silêncio de mais um dia de trabalho sob o sol escaldante), mas para acompanhá-lo deus lhe deu o ritmo e a melodia, e viu que era bom. A herança das work-songs que os escravos negros deixaram – somada às suas celebrações cardíacas e ribombantes -, formaram, segundo o pensador Erick Hobsbawn em seu “A História Social do Jazz”, o terreno adequado para a evolução do jazz e do blues, que se desenvolveram sem pressa em bares, cabarés e partituras das décadas seguintes, registrados em grossos discos de cera que mal carregavam uma música completa.
No meio do século XX a revolução tecnológica dos discos de vinil (que atingiam a incrível capacidade de armazenamento de quarenta minutos), acompanhou a ascensão de um novo gênero musical, que subia nas paradas de sucesso na mesma proporção em que preocupava as “boas famílias” de uma sociedade que assistia perplexa à invenção da adolescência (ao mesmo tempo em que tentava manter seus filhos dentro de suspensórios e longe da nova moda). Nascia o rock n’ roll, e com ele a era dos álbuns, esse feixe de canções combinadas, contido num elepê, fita cassete, cedê ou download.
O conceito de álbum, como conhecemos hoje, surgiu mais ou menos na mesma época em que a música pop soltava seus primeiros gritinhos histéricos, mas ali em meados dos anos cinqüenta quem melhor se aproveitou da novidade foram mesmo os músicos do jazz (que enxergaram nesses quarenta minutos que passaram a caber num disco, a possibilidade de registrar testamentos musicais de “longa duração” e “alta-fidelidade”), e os estandartes do nascente rock n’ roll, que cunhavam as bases daquilo que moldaria a cara da, então, embrionária cultura pop.
Os primeiros álbuns de pop não passavam de coleções de singles de sucesso, esse sim o principal formato de suporte fonográfico para os bailes e vitrolas da década de cinqüenta. Na passagem para os sixties, o público americano “descobriu” o elepê, e pela primeira vez os singles ficaram para trás nos gráficos de vendas que comparavam seu desempenho ao do irmão mais novo.
Nos Estados Unidos, os americanos abraçaram a novidade com a devoção de quem sonhava “tomar o poder” das mãos do tio-Sam confederado, e os singles passaram à condição de coadjuvantes, alimentando expectativas do mercado, ou experimentando a notoriedade dos novatos que almejavam um disco cheio (o qual só conseguiam se sua popularidade comercial fosse satisfatória para a fome das gravadoras). Na Inglaterra esse processo demorou um pouco mais, e os singles reinaram quase até o fim da década.
Já os anos setenta passaram à história como a época do EU, e principalmente em sua primeira metade fizeram a fama dos discos conceituais, filhos diretos da fantasia psicodélica militaresca dos Beatles em seu superlativo ‘Sgt Peppers’ – ou, questão de preferência, dos Stones, com sua fina ironia “satanista” multi-colorida ‘Their Satanics Majesties Request’ –, ambos de 1967.
Da porra-louquice cabeluda de Alice Cooper (‘Welcome to the Nightmares’ e ‘Go To Hell’), passando pelo rock progressivo asséptico do Genesis (‘The Lamb Lies Down On Broadway’), e chegando à grandiosidade operística do Queen (‘A Night in the Opera’), quase todo mundo (além desses e de muitos outros, Jimi Hendrix, Frank Zappa, Pink Floyd, King Crimson, Emerson Lake & Palmer e The Who entraram na onda) deu um jeito de arranjar um conceito qualquer para amarrar seus discos em torno de um mesmo assunto. John Lennon, no começo da década, percebendo o embuste que poderia facilmente se esconder atrás de tanta pompa, discursou a favor do que ele batizou de “cultura real dos singles”, que apartados de seu contexto podiam revelar seu real poder de fogo.
Na meio dos anos oitenta a virada tecnológica do surgimento do cedê ofuscou essa “cultura real dos singles” em um deslumbramento desconfiado parecido com aquele que assombrou o mundo da música trinta anos atrás, quando vinte minutos de cada lado eram a novidade da vez. Mesmo que, a princípio, fosse tratado com suspeita pelos colecionadores e puristas em geral – que alegavam a óbvia desvantagem gráfica do cedê, além dos discursos inflamados que tentavam provar que seus vinis tinham um som mais orgânico, mais “quente” –, a tecnologia mais uma vez prevaleceu: Com um som digital cristalino e capacidade de armazenamento que ultrapassava os sessenta minutos, o cedê virou a década assumindo o papel de ícone principal da nova cultura pop, cheia de camisões xadrez, distorção e microfonia. (É, nem tão nova assim).
Em sua primeira metade, os anos noventa floresceram sob a renovação barulhenta do grunge, e do meio para o fim os reis do britpop, Blur e Oasis, ainda brigavam por popularidade quando os primeiros arquivos MP3 começaram a aparecer na internet (muitos ainda se lembram da famosa batalha dos singles, quando ‘Country House’ do Blur e ‘Roll With It’ do Oasis, lançados na mesma semana, disputaram a tapas a liderança do número de vendas). O vinil ainda ensaiou uma ressurreição charmosa, curiosamente pelas mãos da música eletrônica, mas o embrião daquilo que iria mudar o modo como a humanidade se relaciona com a música já estava forte e bem nutrido, ansioso por eclodir.
Em mil novecentos e noventa e nove, Shawn Fanning, então com dezenove anos, queria uma maneira mais fácil de baixar músicas em MP3 na Internet (é bom lembrar que nesta época isso não era nada fácil. Além de dominar muitas ferramentas, o internauta devia se armar com doses generosas de paciência), e assim mais uma vez a insatisfação juvenil arrancou a história de seu curso e impôs, de maneira quase casual, um novo rumo, incômodo para muitos e poderosos: nascia a primeira versão do Napster.
O princípio era simples, cada navegante da web disponibilizaria sua musicoteca digital pessoal para todo o mundo virtual, possibilitando a troca de arquivos numa escala inimaginável até então, e mesmo que gigantes rançosos como o Metallica tenham se associado à apavorada indústria fonográfica para, enfim, conseguir tirar do Napster sua principal e revolucionária característica, menos de dois anos depois a idéia genial já era de domínio público, e logo sites como o Kazaa, Audiogalaxy, Morpheus e tantos outros já acenavam com um sorrisinho irônico de dentro da tela de monitores de todo o planeta, garantindo que um controle efetivo sobre a livre troca de arquivos se transformasse numa fragorosa piada “interna” entre os geeks e navegantes mais atentos.
Enquanto o intercâmbio de músicas pela web se tornava um procedimento quase banal, cotidiano, os primeiros fenômenos digitais do pop do novo milênio começaram a aparecer. Os Strokes, com apenas um epê de três músicas (lançado em formato físico pelo selo inglês Rough Trade) foram alçados à condição de estrelas muito antes do primeiro álbum ocupar as prateleiras das mega-stores, e ganharam fama e o respeito tanto da imprensa americana, quanto da ranzinza press britânica, com algumas poucas músicas circulando livremente por milhares de computadores pessoais, inaugurando oficialmente uma nova era em que os destinos tanto do single quanto do álbum seriam novamente revistos.
Se apropriando das possibilidades dessa nascente nova-ordem, um número incalculável de músicos e bandas de todas as estaturas mercadológicas e artísticas passou à experimentação, recriando uma nova função para o single, que abandonou a retaguarda e ganhou uma condição virtual paralela à do álbum. Muitos grupos populares em suas cidades abraçaram a boa-nova como o caminho-das-pedras para romper as fronteiras de seu estado natal, e alcançar um público antes inatingível.
No Brasil o caso mais notório talvez seja o da gaúcha Fresno, que a partir da popularidade local invadiu, via internet, a Mtv e os palcos de todo o país, transformando o grupo em um ótimo negócio, inicialmente sem a intermediação das outrora poderosas majors (ainda que o último disco do conjunto, ‘Redenção’, tenha sido lançado pela Universal). Já o grupo paulista NX Zero levou a experiência independente ao mainstream, revelando que as gravadoras, mesmo cambaleantes, ainda se equilibram no mercado.
Yeah Yeah Yeahs (USA), Móveis Coloniais de Acaju (DF), Arctic Monkeys (UK), Cachorro Grande (RS), Macaco Bong (MT), Vudú (ARG,) Clap Your Hands Say Yeah (USA), Supersônicos (UY), Autoramas (RJ) e tantos outros se favoreceram da internet e seus downloads rápidos, inaugurando uma nova lógica, manifesta nos festivais independentes e na imprensa “informal” dos blogs. Seus álbuns em cedê foram rebaixados à condição de adereço opcional, e a música em si se desprendeu de formatos, emprestando uma propriedade característica dos líquidos: passou a tomar a forma do recipiente em que é depositada. Enterrando de vez os velhos e empoeirados discmans, o IPod (e todos os seus parentes menos ilustres), passou a ser o cantil predileto dos andarilhos urbanos das grandes cidades.
Mas se a música havia se libertado da cruel ditadura comercial das gravadoras e todo gênio incompreendido iria finalmente ser entendido, colocando sua obra genial a disposição do mundo, a rede mundial de computadores se tornou uma descomunal feira-livre de pop-songs inéditas, onde cada um reclamava para si, no grito, um pouco de atenção. E, derivados dessa nova lógica cultural, blogs e sites especializados no assunto (muitas vezes desprendidos de qualquer corporação comercial estabelecida, onde a linha editorial aponta somente para a opinião e discussão) acabaram por ocupar uma lacuna que a imprensa “oficial” ainda tentava entender.
O produto mais recente do poder que essa nova imprensa exerce (associada, é claro, a sites como o Myspace e Tramavirtual), atende pelo nome de Mallu Magalhães, e conta apenas quinze verões em sua curta vida. Como todo mundo já sabe, a Mallu “aconteceu” na internet no apagar das luzes de janeiro último, com apenas quatro canções em sua página no Myspace, e já no começo de fevereiro os principais veículos da imprensa “oficial”, musical ou não, se estapeavam atrás da garota, para disfarçar o “atraso” da pauta de "descoberta exclusiva".
Mallu Magalhães acabou de entrar em estúdio– já quase como um cânone do novo pop –, para registrar seu álbum de estréia, mas caso quisesse ignorar a práxis da maioria, a viabilidade de trabalhar apenas com canções avulsas já havia sido antecipada. Modus Operandi que a banda goiana MqN inverteu já há algum tempo. Com dois discos oficiais na praça (‘Hellburst’ e ‘Bad Ass Rock N’ Roll’), o grupo vem lançando periodicamente o que apelidou de Fuck Cd Sessions, em que diz ter abolido o cedê e optado pelo lançamento regular de singles virtuais (prática que o Smashing Pumpkins também diz ter adotado), paralelamente a tiragens limitadas de compactos simples em vinil.
Ao mesmo tempo em que a gravadora/site Trama Virtual oferece, gratuitamente, álbuns inteiros e recém lançados para download, em projetos que remuneram o artista de acordo com o número de “cópias” baixadas (com acesso livre e sem burocracia a seus visitantes), ou de cotas de patrocínio. Tom Zé, Superguidis e Macaco Bong já experimentaram a novidade. Vivemos uma época de testes e apostas, que não aceita planificação dos procedimentos e gosta de premiar quem arrisca um passo rumo ao desconhecido.
O álbum como eu conheci, lá nos anos oitenta, não faz mais sentido. O primeiro disco que comprei com meu próprio dinheiro foi o ‘Bad’, do Michael Jackson, mas ninguém poderia adivinhar que dali a alguns anos ‘Dangerous’, o primeiro blockbuster-anos-noventa do rei-do-pop, seria soterrado pelo fenômeno xadrex ‘Nevermind’ (do Nirvana), nem que sua relevância musical, dinamitada por escândalos sexuais e pela precária substância musical de suas novidades, seria deixada à deriva, perdida no imenso oceano de possibilidades virtuais desse novo milênio pós-tudo.
Ninguém naquela época, nem no mais elaborado e exercício de presciência, poderia inventar um destino tão assustadoramente futurista para nossos amados álbuns. Depois de presos à cera, ao vinil, às fitas magnéticas e ao plástico metalizado, depois de alforriados e fluidos, após percorrerem arquivos compactados, e-music players e i-pods (num universo tecnológico que não se permite estagnação e ainda nesse presente momento está em constante e plena mutação), ainda deixam suspensa a possibilidade de que ao se levantar da cadeira depois de ler este texto e fechar essa janela do Windows, sua maneira de ouvir música já esteja obsoleta.
É melhor você ir lá conferir.
2 comentários:
Parabens!
Bom texto, mais uma pagina da historia da musica foi virada...
e o melhor é q agente q escreve...
é loco pensar q participamos desse tipo de mudança... seja como musico, ou publico consumidor (não como comprador, mas como ouvinte, até mesmo no seu caso como historiador com o seu blog...
Parabens!
Pôrra! O texto ficou ótimo. Não acompanhei tudo isso tao de perto (tenhu 19 anos), mas da parte q acompanhei foi isso mesmo. achei massa ler, é um pedaço da minha historia tb.
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