Mais de quarenta bandas se apresentaram nos dois palcos, e se o grupo baiano Cascadura, escalado como “atração principal” de sexta-feira, não conseguiu segurar a multidão madrugada adentro, os franceses do Papier Tigre – guitarras, vocais e bateria – também não conseguiram mais do que uma atenção curiosa para seus experimentos noise. Já a apresentação do Diego de Moraes e o Sindicato ganhou pela diversão. Não exatamente a do público, mas a deles. O que acabou se desdobrando em diversão também para um número cada vez maior de espectadores.
Diego de Moraes estava tão à vontade no palco que, confessou mais tarde, chegou a chorar, comovido com uma lembrança do pai. E mesmo que problemas técnicos escondessem guitarras, o coletivo de músicos que se ajuntou ao redor do jovem compositor cuiabano-canedense soube manter a base sólida para suas performances líricas corrosivas e, ao mesmo tempo, simpáticas. Depois do Diego, o MqN assumiu o palco ao lado e, sem muitas surpresas, convulsionou a multidão à frente, com um set parecido com o do último Porão do Rock, em Brasília.
Cheguei mais cedo na sexta para, curioso que estava, conferir o Ebinho Cardoso Trio, grupo de jazz instrumental liderado por uma lenda local do contra-baixo. Mas o apuro frio da técnica extrema, que os músicos de conservatório se orgulham em exibir em ocasiões assim, nunca conseguiu me comover. Arranjos herméticos em melodias tão assépticas não servem para quase nada (a não ser para o gozo autista do culto a si próprio). Alguém matou a charada quando disse: “Músico de jazz, pra mim, tem que ser viciado em heroína” .
Porém, o melhor show da sexta feira foi do septeto paulistano Jumbo Elektro. O vocalista Tatá Aeroplano, um genuíno show-man, transformou a arena do Calango numa imensa pista de dança, numa combinação festiva de electro-rock, new wave e disco-music. Durante os quarenta minutos que o grupo permaneceu de posse do palco, a caravana aglomerada dançou e suou o que podia, numa ovação tão franca quanto podia ser.
Já no sábado o Hurtmold fechou a noite, perto das quatro horas da madrugada, sob olhares atentos de um público composto, pelo menos a metade, por jornalistas e integrantes de outras bandas, o que dava umas quatrocentas pessoas no total, já que somente de convidados, entre músicos e imprensa, o festival levara mais de duzentas pessoas à Cuiabá.
A seqüência que culminou no show do Hurtmold foi a melhor série dos três dias de festa, e começou lá no meio da noite com a banda argentina El Mato a um Policia Motorizado, responsável por uma das apresentações mais intensamente emocionantes do festival. Uma profusão “desordenada” de guitarras e microfonias se confundindo por entre melodias tão singelas quanto tocantes, enquanto o charme lo-fi escondia baixo e bateria por entre as camadas de noise, num set que fundia a candura nerd do Weezer com a intensidade e ousadia do Sonic Youth, debaixo de uma inconfundível sotaque hermano.
O Macaco Bong, o produto mais bem acabado dessa novíssima safra cuiabana, seguiu o programa jogando para a torcida, e se a guitarra sinuosa e erótica de Bruno Kayapy é suficiente para confirmar que a Música não vem dos conservatórios, a precisão improvisada da cozinha poderosa do baixista Ney Hugo e do baterista Ynaiã Bentrholdo deitou uma pá de cal sobre a soberba da erudição acadêmica. E o público não poderia reagir melhor ao amontoado lascivo de melodias insinuantes – recortadas por rompantes violentos de virilidade –, e respondeu com gritos e pulos entusiasmados ao instrumental poderoso do trio, que acaba de ser convidado para a sétima edição do Pop Montreal Festival, no Canadá.
Os gaúchos do Walverdes não apareceram, culpa de uma pneumonia que atacou o guitarrista Mini ainda em Porto Alegre, mas os pernambucanos do AMP cumpriram exemplarmente o papel de esporro-da-noite, num show de guitarras barulhentas explodindo entre espasmos graves de tensão melódica. O tipo de set pra quem daria um braço por uma apresentação dos Hellacopters.
Os cariocas do Do Amor são mesmo uma banda especial. Se orgulham do lugar que ocupam na “vanguarda” do rock brasileiro, enxertando conceitos estranhos ao gênero e criando sua versão para uma espécie de pop-antropológico nacionalizado, onde o diálogo de ritmos regionais com estéticas “universais” é mais importante que o próprio resultado, relegando ao prazer-do-ouvir um caráter quase zoológico.
Outros grupos, menos afetados e bem mais espontâneos, já conseguiram efeitos, no mínimo, mais genuínos. As paraenses La Pupuña e Cravo Carbono, pra ficar somente em dois exemplos, conseguiram capturar essa troca do regional com o “metropolitano” com muito mais propriedade, e ainda que não recebam os mesmos holofotes que a versão carioca do tema, estão anos-luz à frente de seus colegas.
Antes do Vanguart a paraibana Cabruera exorcizou seus demônios num caleidoscópio sonoro tão abrangente quanto dançante e suarento. Antes mergulhada numa instrumentação tradicional, que envolvia acordeom, pandeiro, violão e, no máximo, um contra-baixo, a Cabruêra de hoje é essencialmente elétrica, munida também de guitarra e bateria, e o caldo psicodélico que eletrifica o coco paraibano e conecta o forró às pirações liquefeitas do dub jamaicano e do soul americano, surtem um efeito tão entorpecente quanto intrigante. Sampleando repentes e ecoando seus versos numa espécie de transe mântrico, o vocalista Arthur Pessoa se veste da carne do personagem e emoldura o sertão da Paraíba numa combinação eletrônica de elementos da cultura popular do interior do Brasil.
No começo da noite, o instrumental pesado de recortes precisos e riffs perfeitos da paulistana Elma foi a primeira coisa a fazer sentido no domingo, seguida de perto pela Revoltz, quarteto cuiabano que confere um delicado sabor jovem-guarda à sua new wave saltitante. A cearense Fóssil, mergulhando cada vez mais fundo em atmosferas geladas e ambientações intensamente etéreas, forjou paisagens instrumentais oníricas para os dois mil humanos que habitavam, espalhados, a arena do centro de eventos Pantanal.
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Numa maratona tão cansativa quanto recompensadora (e eu não estou falando em Cubo-Cards – a moeda oficial do festival, aceita para compra de praticamente tudo, dentro dos limites do centro de eventos Pantanal), o Calango merece receber os louros e elogios à sua edição mais caprichada, que além da programação convidativa, reuniu pela primeira vez (quase) todos os coletivos que movimentam de fato a nova música brasileira, filha direta e orgulhosa do circuito de festivais, além de sediar a tradicional reunião da ABRAFIN – Associação Brasileira dos Festivais Independentes, onde produtores de todo o país trocam informações, deliberam demandas e, principalmente, se ajustam numa saudável competição pelo melhor festival do ano. O Calango, até agora, tem boas chances de levar esse troféu para Cuiabá.