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sexta-feira, janeiro 22, 2010

Money For Nothing

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Desde que o mundo é mundo a humanidade está dividida em contentes e descontentes. E o descontentamento é poderoso, transformador, quando conduzido para o lugar certo. Mas independente da geografia, o “lugar certo” na maioria esmagadora das vezes está subordinado ao contexto, a uma série de fatores conjugados que ajuda na conversão dessa contrariedade em uma nova realidade que, por melhor que seja, muito provavelmente vai produzir novos descontentes.




A atual cúpula da música independente nacional, resumida em cerca de meia-dúzia dos produtores de alguns dos festivais mais importantes do circuito, ascendeu localmente em meio a um cenário de transição, fruto da associação entre uma nova, e favorável, realidade tecnológica e a insatisfação com aquela lógica de mercado castradora, que impedia sistematicamente o desenvolvimento orgânico de uma música honesta, essencialmente urbana, até então mal-aparelhada e apertada em guetos.


Da apropriação dessa popularização tecnológica via banda-larga, e do descontentamento (e, quase sempre, de uma devoção quase religiosa à música) nasceram os símbolos propostos de uma nova lógica, organizada de baixo para cima, que desprezava o “sucesso” e em seu lugar cobrava (propunha) somente dignidade artística, traduzida na “utópica” criação de um circuito nacional de música independente que conseguisse, no mínimo, se manter de pé sozinho.


O resultado disso tudo todo mundo já sabe. Reunidos em associações locais que se expandiram (e se integraram) até atingirem alcance nacional, produtores (que grande parte das vezes são também músicos) fundaram a ABRAFIN – Associação Brasileira de Festivais Independentes, e uma série de outras siglas que tentam organizar e, atribuindo um método ao processo, profissionalizar o circuito.


Porém, estabelecidos os pilares dessa nova realidade, um eventual e desorganizado coro de descontentes surgiu e tem se manifestado ferozmente sempre que pode. E o ultraje máximo a que respondem com tanta ferocidade é o fato de que, ao serem convidados para alguns dos vários festivais da associação, a ABRAFIN se recusou a pagar para tê-los em suas programações.


O mais novo palanque dessa turma é o espaço reservado aos comentários na entrevista que o Pablo Capilé, membro cuiabano dessa cúpula, concedeu ao Hugo Morais e que está publicada no Inimigo.com. E o mais curioso não são as reclamações recalcadas, mas a paciência e didatismo com que figuras como o Miranda (é, esse mesmo) e o Fabrício Nobre tratam seus detratores, respondendo pacientemente a esdrúxulas acusações que vão de enriquecimento ilícito até exploração de trabalho escravo (!?).


Não consigo enxergar muita polêmica no tema. Juro. Pra mim as coisas são tão simples quanto poderiam ser. Música é, essencialmente, prazer estético, comunicação. Cada banda vale quanto pesa, e se a sua ainda não se comunica como você gostaria, e não garante um público que valha o investimento, festival nenhum no mundo vai gastar sua verba com você. Com ou sem patrocínio público. Ponto.


Agora, se você conseguiu repercussão local a ponto de um festival de outro Estado se interessar em ter sua banda na programação, mas te trata mais como uma “aposta” do que como “revelação”, você tem duas opções. Se tiver mesmo certeza do seu talento, aposte você também e invista aquela grana que estava reservando para trocar de guitarra. Pague pela viajem, toque e faça diferença.


Tocou muito cedo, tinha pouca gente, o show não teve a repercussão esperada e ainda ficou sem a grana? Paciência. Era uma aposta e você sabia que o risco do fracasso existia tanto quanto o do sucesso (o produtor do festival também correu risco de falhar, e no caso dele o prejuízo seria bem maior que o seu).


Pablo Capilé


A segunda opção é achar que você é talentoso demais ou já está mesmo muito velho pra esse tipo de aposta, e recusar. É simples. Cada um encara a música de um jeito, e se você já desistiu de apostar em si mesmo é por que deve ter definido outras prioridades. E se não definiu, deveria.


Mas o “caso modelo” que inspira tanta reclamação sem sentido, tem contornos bem particulares. Fernando Catatau, líder do Cidadão Instigado, em matéria da Rolling Stone Brasil assinada pelo chapa Leonardo Dias Pererira, foi o legitimador involuntário dessa nova turma de descontentes ao cravar:


Acho esses festivais e a entidade que os organiza [Abrafin] uma máfia. São sempre as mesmas bandas e toda vez que nos chamam é pra fazer show quase de graça. Não tenho mais idade pra desvalorizar a minha música. Até brincamos entre a gente que vamos fazer a Abramim - Associação Brasileira dos Músicos Independentes.


Mas o Cidadão Instigado sempre foi muito mais sucesso de crítica que de público, e jornalista não paga ingresso. De modo que é bem possível que as contas não fechassem pra nenhum festival que bancasse a banda pelo peso que Catatau crê que ela vale, e assim o músico descarta conscientemente e por opção outras possibilidades (como a própria formação de um público maior) em nome da idade e de um justo brio artístico.


O perigo, pra você que se inspira na atitude do Catatau para se indignar pela falta de pagamento pela sua música, é que muito provavelmente seu talento é tão incompreendido quanto falso, e além de não ter público você não tem o aval da imprensa especializada, esvaziando assim suas reivindicações e te transformando numa espécie de bebê-chorão, reclamando aceitação num clubinho que não te trata como você acredita que deveria.


E se você fosse inteligente o suficiente, usaria essa sua frustração, esse seu descontentamento, pra engolir o orgulho, voltar pra garagem e polir a criação, planejando também uma vida financeira para sua banda, poupando os centavos para persistir na aposta, até que o público (ou a crítica) te legitime e dê algum sentido às suas aspirações de ser pago pra tocar.





9 comentários:

Two Beers or not Two Beers Records disse...

Capilé é o Adam Smith, misturado com o bolsa família. É completamente neo-liberal, mas depende do Estado pra tudo! Quando a ABRAFIN vai começar a lutar pela bolsa-roqueiro, pra ajudar os roqueiros mais necessitados? Ai que burro, dá um livro do Adorno pra ele!

DIY!

foca disse...

Muito bom eu texto igor. Se eu osubesse escrever queria ter dito exatamente isso. :)

foca disse...

anderson = foca

edimar filho disse...

Grande Higor!
Como sempre bons textos, e boa visão!!!

Cubo Card disse...

Mandou bem demais Hígor. Mesmo.


beijos

Ney Hugo - Cubo Comunicação disse...

beleza de pena! muito foda

Mateus Potumati disse...

Higor, texto muito claro e bem escrito, uma explanação brilhante sobre a gênese e o funcionamento da rede. Só alguns comentários:

1. O Cidadão Instigado é, sim, um sucesso de público. Nunca fui a um show deles que não estivesse lotado, aqui em São Paulo e em outras cidades. No show de lançamento de "Uhuuu" no SESC, eles venderam mais de 200 discos, segundo me disse um dos produtores do disco. Têm uma consideração consistente da crítica há bastante tempo também, tendo os dois últimos discos no topo das listas de melhores discos em vários órgãos de imprensa. Além disso, é uma banda com músicos experientes, envolvidos em vários projetos, que se sustentam (muito bem para os padrões nacionais) com a música. Só para ficar num exemplo recente, tenho certeza de que qualquer show deles em um festival da ABRAFIN teria mais público do que um Dirty Projectors, que ninguém cogitaria trazer para o Brasil sem pagar cachê. Enfim, esse é um problema comum e reincidente entre algumas bandas de São Paulo e a cadeia produtiva da ABRAFIN e Fora do Eixo, e nem todos podem se dar ao luxo/estão dispostos a entrar numa van e viajar 15, 18 horas pra tocar de graça. É um problema interessantíssimo dessa nova produção brasileira, que expõe virtudes e fragilidades dos dois lados e, como tal, exige inteligência e paciência se os envolvidos quiserem mesmo se entender.

2. O Catatau mesmo comentou comigo uma vez a respeito dessa declaração na RS. Ele me disse que não gostou da forma como a frase foi publicada, que o conteúdo estava fora de contexto e levou a essa interpretação de confronto aberto, o que segundo ele não era sua intenção. Faz muito tempo que ele me falou isso e não lembro exatamente a explicação dele, e mesmo que eu soubesse não é meu papel ficar defendendo este ou aquele artista. Seria muito interessante se você mesmo o entrevistasse e publicasse sua opinião aqui no blog a respeito. Certamente enriqueceria demais essa discussão.

Um abraço e parabéns pelo seu trabalho, que só melhora.


Mateus Potumati.

Almeida disse...

"O perigo, pra você que se inspira na atitude do Catatau para se indignar pela falta de pagamento pela sua música, é que muito provavelmente seu talento é tão incompreendido quanto falso"

Ok, isso é verdade. Mas então por que os produtores de eventos não colaboram eles mesmos para que os músicos tenham ciência do quanto eles são ou não são bons? Por que em vez de colocar 40 bandas quaisquer no festival, só pra dizer que tem 40 bandas, os produtores não fazem uma peneira muito mais rigorosa e, chegando à conclusão de que só tem realmente 5 bandas boas, não fazem o festival apenas com essas 5 (garantindo a qualidade do evento e ainda resolvendo o problema dos cachês - é muito mais viável remunerar 5 do que 40)?

Em outras palavras, na hora de convencer o músico a tocar de graça e aumentar o cacife do festival junto aos potenciais patrocinadores futuros, a banda é genial. Na hora que essa mesma banda exige remuneração proporcional a essa genialidade, o músico passa a ser "o inimigo", o "bebê chorão". Tem algo nessa conta aí que não fecha.

Roberta disse...

É sério que todo mundo acha normal dizer "a atual cúpula da música independente nacional"? Essa necessidade de ter hierarquia e alguns serem "patrões" de outros já mostra bem que essa cena já deixou de ser independente faz um tempo.