.
Saiu a edição número 20 da revista +SOMA, que traz na capa uma obra do artista português Vhil, e no recheio um papo que o Mateus Potumati bateu com J Mascis e seu Dinosaur Jr, uma entrevista que o Onesto concedeu ao Tiago Moraes e uma matéria minha sobre 12 Arcanos, o último disco dos Mechanics (além de várias outras coisas, é claro). O texto sobre os Mechanics eu reproduzi aí embaixo, mas todo o resto do conteúdo da revista você pode apreciar pegando uma cópia impressa por aí (em Goiânia, na Ambiente Skate Shop. Onde mais?), ou encomendando um download, em dois ou três movimentos, clicando bem aqui.
M E C H A N I C S
O que importa é como se atravessa o fogo
Márcio Júnior, mentor intelectual do grupo mais barulhento da capital brasileira do rock de garagem, é um sujeito boa-praça: engenheiro diplomado, inteligente, articulado e simpático. Mas, ao contrário do que faz supor o breve resumo de seu currículo como ser humano, não é exatamente um bom partido: a engenharia ficou na universidade, e seu único legado autoproclamado é o pensamento lógico. Sua inteligência, qualidade quase sempre admirada pelo status quo, serve mais à confusão que ao entendimento, assim como sua verborragia corrosiva e ensaiada (e nem por isso menos autêntica). A simpatia? Essa, sim, seria livre de interpretações marotas, não fosse certo cinismo displicente embaralhado na postura bem-humorada.
A preferência pela contramão, o fascínio pelo avesso e o gosto pela contradição estão na gênese do Mechanics, assim como a melodia, a harmonia e o ritmo estão no DNA da maioria do resto das bandas do mundo. O grupo é um dos decanos do rock goiano, orgulhoso de seu feito único de figurar em todas as edições do hoje tradicional Goiânia Noise Festival. E Márcio Júnior (além de vocalista, agitador cultural e executivo da mais conceituada etiqueta de rock independente do País, a Monstro Discos), conduziu sua cria principal através de uma década e meia com mão-de-ferro, assoberbado pela recusa autoimposta de fazer qualquer concessão além daquelas que ele mesmo se permite.
A sequela mais recente dessa intransigência toda fica evidente em 12 Arcanos (sétimo título de uma discografia que conta uma demo-tape, três álbuns, um single, um compacto em vinil e um disco de versões acústicas), o regurgitar artístico de uma época especialmente negra na biografia de um cara desde sempre interessado nas sombras.
“Sofrer é uma palavra-chave”, ele diz, antes de soltar uma gargalhada tão rumorosa quanto debochada, garantindo que a violenta mordacidade do disco é produto de uma época de muita amargura, cujo clímax foi o fim de um casamento. Mas ao contrário de qualquer intimismo antirromântico, em 12 Arcanos o desespero humano foi expandido para uma generalidade assustadora, e os elementos dessa alquimia da desesperança são o ódio, o desprezo e a violência, gratuitos ou não. Nada direcionado a alguém em específico, mas apontado para o mundo todo, inclusive contra si próprio: “O que importa é como se atravessa o fogo”.
Baseado em doze arquétipos, como numa espécie de tarô burlesco, 12 Arcanos explode no chicotear estridente das guitarras e no retumbar maníaco de baixo e bateria, soterrando a mensagem lúgubre dos vocais debaixo de uma massa sonora perturbadora. Mensagem essa que experimenta o português pela primeira vez (excetuando-se o cultuado punk festivo “Formigas comem porra”, hit da primeira demo-tape de 1995, relançado num single em 2003), com a intenção deliberada de oferecer ao receptor o sentido claro e instantâneo do negativismo escancarado que atravessa a obra: “O inferno é aqui!” (a exceção é a faixa bônus “I am Joe`s Fear Of Disease” – homenagem ao pintor e quadrinista norte-americano Joe Coleman, única do disco com letra em inglês).
Fã declarado de David Bowie (“Bowie é O cara!”) Márcio segue, ao seu modo, a doutrina mutante do camaleão, na medida em que se dedica ao descarte atencioso de padrões, fazendo apostas estéticas de alto risco sem, aparentemente, se importar com os efeitos do resultado:
“O meu negócio é fazer, se vai dar certo não é problema meu. Já teve época em que eu achava que ninguém gostava do Mechanics, e isso foi um ótimo motivo pra gente continuar.”
Mas a lírica virulenta de 12 Arcanos tem também outras inspirações menos óbvias, que vão desde o poeta, tarólogo, roteirista de quadrinhos e cineasta chileno Alejandro Jodorowsky, passando pelo citado Joe Coleman e chegando ao artista plástico carioca Lauro Roberto, egresso da cultura de fanzines dos anos 80s/90s, cujo traço demente transcendeu a simples influência e ganhou as capas do álbum e as cartas do tarô bestial que servem de encarte ao disco (e criam uma espécie de iconografia do caos para as doze faixas).
Já a escolha pelo tarô, o ateu convicto Márcio Júnior atribui tanto às peças de Jodorowski, quanto ao seu próprio interesse pelo que chama de camadas do entendimento (o que tenta explicar estabelecendo conexões nada místicas com as inúmeras possibilidades de leitura do inconsciente que as que as cartas oferecem).
E além de um amor arrogante e declarado pelo bizarro, pelo duvidoso, Márcio também não parece temer a polêmica, e é sem acanhamento que desdenha a produção do coletivo de design goiano Bicicleta Sem Freio (responsável pela arte de vários discos e cartazes da Monstro Discos) para ilustrar a condição marginal auto-imposta do Mechanics. Quando perguntado sobre o motivo da escolha de Lauro Roberto para a arte do disco, dispara sem hesitar: Por que eu não lido com maneirismos, não chamo o Bicicleta Sem Freio pra fazer a capa do meu disco. Por que o Lauro tem um senso estético afinado com a gente, e por que não é pra ficar bonito!”. E ainda usa o mesmo tom para torcer o nariz para a maioria das preferências consensuais e explicar que suas prioridades estão situadas fora daquilo que chama de zona de conforto, escarnecendo de certo padrão do bom gosto indie: “É fácil falar que o Pavement é legal, mas foi o Melvins quem escolheu estar no pior lugar de todos.”
E a interdisciplinaridade conceitual do Mechanics aproximou a banda também dos happenings ora escatológicos, ora autodestrutivos do Grupo Empreza (coletivo de artistas performáticos nascido na Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás), criando no palco um duelo cênico com o tumulto ensurdecedor das guitarras e da letra esgoelada no microfone: sessões calculadas e violentas de tapas na cara, corpos amarrados com explosivos e cabelos engolidos (e vomitados de volta) formaram par com algumas das apresentações mais intensas do grupo em Goiânia, atingindo em cheio um público que, oscilando entre a admiração e a repulsa, nunca passa incólume por uma experiência como essa.
E é por essa postura de constante incômodo e provocação que a popularidade underground do Mechanics não vai além do que alcança o olhar desconfiado de seu patrono que, cioso e sobranceiro de sua pecha de maldito, não ambiciona que a compreensão das tais camadas de entendimento que o Mechanics propõe vá muito além de seu circunscrito séquito de admiradores, quase todos já especializados no consumo do contrário. E mesmo entre sua ávida audiência, Márcio não descarta nem desabona “os fãs que ainda não atravessaram a superfície e vão ao show só para bater cabeça”, contando sempre com a possibilidade de que o véu caótico dessas apresentações desperte neles também a curiosidade para romper a linha d’água e, a partir da barulheira, mergulhar de fato no nebuloso e complexo universo dos Mechanics.
Nenhum comentário:
Postar um comentário