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segunda-feira, dezembro 14, 2009

O som da saudade

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Todo mundo sabe que um pé-na-bunda pode ser transformador, e que (para quem tem talento pra isso) o melhor exorcismo é a conversão de dor em música (ou literatura, ou cinema...), mas a história ganha contornos de novidade quando quem se utiliza do clichê é o ex-Mundo Livre (e agora ex-marido) Otto, justamente por que talento sempre foi um substantivo duvidoso para falar de sua carreira solo.




Porém, desmascarado como Rob Flemming diante de Charlie Nicholson, em 2008 Otto se viu despido de seu bem maior (sua então estonteante esposa, a eterna “Engraçadinha” Alessandra Negrini) e, despedaçado pela própria desgraça afetiva, aparentemente concentrou cada gota de desespero na música, regando seu deserto interior com um refinamento surpreendente, tão habilmente doloroso quanto manifestamente genuíno: do fim de seu casamento com a atriz global, Otto pariu a fórceps Certo Dia Acordei de Sonhos Intranquilos, o quarto e, de longe, melhor disco de sua carreira.


Trazido à pauta brasileira depois que o New York Times e o Boston Globe destacaram suas qualidades, hoje Certo Dia Acordei... circula pela crítica nacional com status de um dos melhores discos do ano.


A faixa de abertura, “Crua”, invoca certa cafonice melancólica, emoldurada sobriamente por arranjos de corda e um lamento seco: “Mas naquela noite que eu chamei você fodia de noite e de dia.”.

Já em “O leite”, Otto se acompanha da melhor cantora brasileira dos últimos tempos, a Céu, para cravar, com ares de profecia: “Quando eu perdi você, ganhei a aposta” (e foi precisamente essa passagem que me fez lembrar o romance mais famoso do Nick Hornby, quando Rob Flemming confessa que durante seus dois anos de namoro com Charlie Nicholson sentia que a qualquer momento seria desmascarado).

Na sequência do repertório, Otto se reaproxima de seus contemporâneos, e o groove balançado de “Janaína” chega a lembrar o suingue manhoso do Eddie, o primo pobre (e negligenciado) do manguebeat.

Mas a azeitona do Martini, que faz uma conexão improvável entre a lírica popular de Reginaldo Rossi e aquela crueza desesperada de Paul Mc Cartney em “Oh! Darling”, ganha forma na purgativa “6 minutos”, em que esbanjando tensão e resgatando timbres old school Otto cria imagens tão nítidas quanto reveladoras: “E você me falou de uma casa pequena, com uma varanda, chamando as crianças pra jantar... isso é pra morrer!”




Com uma banda que acumula estrelas da categoria do guitarrista Fernando Catatau (Cidadão Instigado), e a cozinha da Nação Zumbi (Dengue e Pupillo, baixo e bateria), Certo Dia Acordei... ainda traz as parcerias da cantora mexicana, vencedora do Grammy Latino por seu Mtv Unpluggled, Julieta Venegas (“Lágrimas Negras” e “Filha”) e Lirinha, do Cordel do Fogo Encantado (“Meu Mundo”, a única faixa dispensável da track list).

Otto ainda capitaliza o mérito de desenterrar “Naquela Mesa”, hino perdido de autoria de Sérgio Bittercourt (filho de Jacob do Bandolim) e cristalizado na voz de Nelson Gonçalves.


E é por essas (e outras) que Certo Dia Acordei de Sonhos Intranquilos deve passar à posteridade como a redenção gloriosa de um artista (pelo menos até então) tão irregular quanto errático. E se o mundo fosse um lugar justo, em respeito ao superlativo poderosamente dramático de Certo Dia Acordei..., os três primeiros álbuns que o antecedem na discografia do músico pernambucano seriam simplesmente apagados da História.


Mas como o mundo nunca foi amigo da justiça, acho que até o Otto concordaria que esse foi um ótimo recomeço.





4 comentários:

Murlo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Murlo disse...

Ainda não tinha visto a playboy da Alessandra. Uhul! Ótima análise.

Anônimo disse...

Realmente é um ótimo disco...

marina w. disse...

Essa foto tem autor, hein?
Tirei no Baixo Gávea.

Não me importo, só estou comentando mesmo.

marina w.