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segunda-feira, janeiro 14, 2013

Os melhores de 2012 - Eduardo Carli



Pra continuar a pesquisa sobre os melhores do ano, o vizinho de blog Eduardo Carli de Moraes manda dizer o que mais tocou em sua vitrola.




UM DISCO

TAME IMPALA - Lonerism
Das drogas psicodélicas legalizadas, o Tame Impala é uma das melhores. O segundo álbum dos australianos, após o magistral disco de estréia, Innerspeaker, oferece ao ouvinte outra viagem memorável e sem risco de bad trip. Somos convidados a atravessar cenários sônicos variados: há um pouco da estética parede-de-som típica do ruidoso guitar-rock do My Bloody Valentine ou do Ride, mesclado com o clima onírico que marca as produções da Elephant 6 (Olivia Tremor Control, Neutral Milk Hotel, Of Montreal...). 


Se o Primal Scream fez nos anos 90 um clássico da psicodelia na era das raves, de mensagem hedonista e celebratória (“vou viver a vida que amo e vou amar a vida que vivo...”), o Tame Impala cometeu com Lonerism uma espécie de Screamadelica da solidão. O transe induzido pela audição de Lonerism é semelhante àquele de grandes clássicos da psicodelia, ainda que Kevin Parker seja mais introvertido do que a média, por vezes beirando a atitude shoegazer – tanto que sua cantoria às vezes me soa como se Thom Yorke tivesse ouvido muito Beach Boys ou The Zombies. “Everything is changing and there’s nothing I can do”, canta Parker na grudenta “Apocalypse Dreams”, mostrando-se estóico diante de um cosmos movediço como o rio de que fala Heráclito - aquele onde é impossível entrar duas vezes. 

Lonerism é também um rio que arrasta o ouvinte por mudanças surpreendentes e imprevistas, funcionando como um álbum coeso, rico em variações e surpresas, repleto de mistérios nunca desvelados por completo, e que convida a repetidas audições – cada uma, uma nova e acachapante viagem. É só soltar as rédeas e embarcar sem medo!


UMA MÚSICA

PÓ DE SER - “De Repente”. 
Batizado com um nome que dá permissão pra experimentar de tudo (e mais um pouco), a banda goiana Pó de Ser faz jus a seu nome com uma música que diz sim às possibilidades novas, às mesclas inéditas. Vale tudo: juntar Itamar Assumpção com Odair José, Tropicália com Sérgio Sampaio, Mutantes com Arrigo Barnabé e enfiar a “viola no rock’n’roll” (como diz outra canção deles, “Bicho Urbano”, um dos melhores retratos de Goiânia compostos nos últimos anos). Como eles mesmos brincaram no papo que tivemos após o show no Vaca Amarela 2012, o Pó de Ser realizou a proeza (dentre outras!) de inventar a “estética dodecafona”. 


Em outros termos: eis aí um experimentalismo tupiniquim aventureiro, sem medo do brega e do excesso, que devora antropofagicamente a música popular brasileira do passado e a recria numa síntese nova. “De Repente”, inspirada canção de Diego de Moraes e Klêuber Garcêz, que integra o recém-lançado EP Tudo Torto em Linha Reta, é a melhor síntese do universo estético do Pó de Ser: é uma pintura do desnorteio que acomete tantos de nós neste princípio de século (“no século 21 sou mais um sem ninguém a me conduzir...”, “entrei num beco-sem-saída, sem porteira nem tramela...”), com versos que descrevem a sensação de ovelha-negra (“desgarrei na contra-mão da boiada...”) e de inquietante insegurança (“lembranças de um tempo remoto em que eu me achava seguro...”). 

Mas o Pó de Ser não aprecia a sensaboria do porto-seguro nem o comodismo do quietismo: prefere navegar na incerteza, com os olhos estarrecidos, feito um “astronauta liberto na Terra / pé no chão e cabeça na Lua / um andróide de carne e desejo / de pão e poesia, na rua...”. O retrato um tanto sombrio dos “7 bilhões de solitários” que ficam “deixando tudo para depois” parece-me, na verdade, uma conclamação, cheia de urgência, para que o ouvinte faça o que sempre recomendaram os sábios: que viva no presente. Pois pode ser que seja ele, o presente, o único tempo em que o Ser existe, em suas eternas mutações, em seu eterno agora... 


UM SHOW

CRIOLO NO CANTO DA PRIMAVERA
Quando Criolo despontou para um público mais vasto, catapultado por esta canção que já fez história que é "Não Existe Amor em SP", ficou claro que qualquer tentativa de domar e domesticar a complexidade desse artista, grudando nele uma etiqueta qualquer (inclusive os óbvios "rapper" e "voz do gueto"), violentava o colorido múltiplo dessa música aventureira, que monta na cabeça do ouvinte um mosaico verbal, um labirinto místico, cheio de sedutoras batidas sobre as quais se derrama um "dialeto suburbano" feito pra dar Nó na Orelha... E nas idéias. 


No Canto da Primavera 2012, diante do maior público de sua carreira e acompanhado por uma banda timbradíssima (que inclui o DJ Ganjaman e Marcelo Cabral, produtores do disco), Criolo fez um show impressionante pelo poder de mobilização do público, pela riqueza de sua expressão corporal-gestual, pela eloquência de sua verborragia sempre sagaz. “O Rap é forte, vagabundo!”, lia-se numa placa empunhada lá do público. Quem ousaria duvidar disso, diante de um show tão poderoso de um artista brasileiro que carrega com tanta responsa a bandeira da independência, da crítica, da insurgência? Como não erguer os punhos junto ao brado de revolta e de resistência que Criolo expressa contra, por exemplo, aquela violência imposta de cima por aqueles que "tem tudo de bom e fornecem o mal pra favela morrer”?

Poeta lírico que lamenta os males da megalópole que Mário de Andrade apelidou de “Paulicéia Desvairada” (os bares cheios de almas tão vazias, a vaidade e a ganância gerando um “mar de fel”...); cronista da vida suburbana em cenários antropologicamente tão ricos como o “Grajauex” (corruptela da terra natal do Criolo Doido, o Grajaú...); missionário-conselheiro a fazer do microfone um instrumento xamanístico; rapper-hippie que nos conclama a “samplear atitudes de amor”... Criolo é tudo isso, e mais um pouco. 

Impossível encerrá-lo numa fórmula, já que sua fertilidade transbordante não se deixa limitar a um estilo, nem a riqueza de suas letras se deixa domar por fronteiras estreitas. Em suas composições “linkadas” e cheias de inter-conexões, ele remete a Muhammad Ali e Mahatma Gandhi, Fela Kuti e Sabotage, Rappin Hood e Facção Central. Cita a Pasárgada de Manuel Bandeira (em "Bogotá") e evoca em "Sucrilhos" as imagens veneráveis de Di Cavalcanti, Hélio Oiticica e Frida Kahlo, só para sublinhar que eles "tem o mesmo valor que a benzedeira do bairro". 

No Canto da Primavera, festival de música primoroso, Criolo deixou claro que é uma das figuras centrais da Nova Música Brasileira, esta que vai se delineando e se fortalecendo em meio aos agitos fora-do-eixistas - e não é difícil se deixar convencer por ele de que o rap, como canta Criolo em seu disco de estréia, faz "muito mais que religião, presídio e cassetete, irmão."



















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